no estadão...
"Meu filho tem 4 anos. E nas “rodinhas” de conversa na porta
da escola, não se pergunta outra coisa: “Pra qual escola ele vai?” No
começo eu não entendia a questão. Eu e meu marido já escolhemos a escola
do Samuel – estávamos na porta dela, inclusive – e não passava pela
nossa cabeça mudá-lo de instituição. Há jabuticabeiras, animais, aula de
música, parques. E ele é muito feliz lá, como já nos disse dezenas de
vezes. A escolha não foi por impulso. Antes de efetivar a matrícula
conversamos com a diretora sobre alimentação, método de ensino,
conflitos e inclusão (ver com meus próprios olhos crianças especiais por
lá foi decisivo porque eu sempre quis que meu filho fosse acima de tudo
uma pessoa tolerante). E por estar assim tão segura das minhas/nossas
escolhas, decidi entender porque essas mães e esses pais estavam tão
inquietos.
Uma delas falou sobre a preocupação com o vestibular e,
como nesta escola não há ensino médio, não conseguiam saber se a escola
era “forte” ou “fraca”. Outros se preocupam com as habilidades futuras
das crianças em línguas estrangeiras. Um pai me lembrou que “inglês todo
mundo já fala” e contou que foi visitar uma escola que ensina alemão
para os pequenos. Muitos questionam o sistema de ensino,
construtivista. “É bom apenas quando eles são menores, depois eles ficam
indomáveis, sem regras”, ouvi de uma mãe.
Foi por isso que decidi entrevistar o psicólogo e
psicanalista Eduardo Sá, professor da Universidade de Coimbra, Portugal.
Fazendo minha ronda diária em portais jornalísticos do mundo, vi que
ele estava lançando o livro: “Hoje não vou à escola – Por que os bons
alunos não tiram sempre boas notas?”, que já está em negociação para ser
publicado também no Brasil. Sá lança a pergunta no texto de divulgação:
“Por que é que a escola dá tanto às crianças, mas não necessariamente o
que mais precisam?”. Ele defende com unhas e dentes uma escola que dê
importância à educação musical e à educação física na mesma medida em
que valoriza o ensino da matemática e do português. É contra a lição de
casa, a favor do brincar e de passar mais tempo com a família. Eduardo
Sá afirma que saber acolher o fracasso dos nossos filhos é de vital
importância e decreta: “Escola demais faz mal às crianças”.
Rita: No Brasil, muitos pais
colocam os filhos ainda pequenos em escolas bilíngues, que ensinam
português e inglês, preocupados com o futuro profissional deles. Algumas
dessas escolas são em período integral e, por isso, as crianças ficam
mais tempo fora de casa. Como o senhor avalia essa escolha?
Sá: Escola demais faz mal às crianças. A escola é
fantástica e indispensável, claro, mas há uma tendência incompreensível
para que, também em Portugal, as crianças passem tempo demais na escola.
Mais escola (ou, se preferir, mais tempo de escola) não significa
melhor escola. Se quisermos ser didáticos para os pais, devemos dizer
que a família é mais importante que a escola e que brincar é tão
essencial como aprender. E mais: devemos dizer que a hierarquia das
prioridades para as crianças deveria ser em primeiro lugar a família, em
segundo a “escola da vida”,em terceiro o brincar e, finalmente, a
escola propriamente dita. Ao imaginarmos a vida diária duma criança, não
devíamos nunca deixar de levar em consideração que estes compromissos
com o crescimento precisam de tempo para que, em conjunto, ajudem as
crianças a namorar com a vida e, ao mesmo tempo, para que elas aprendam a
crescer e aprendam a pensar.
Seja como for, eu entendo que as escolas bilíngues seduzam
os pais. E têm benefícios pela vida fora. Seja como for, parece-me que
os pais ganham se entenderem que em primeiro lugar as crianças devem
brincar com o corpo e ter educação física, porque elas aprendem de
dentro para fora do corpo e aprendem ligando os ritmos do corpo às
regras e às rotinas. Crianças mais amigas do corpo são crianças que se
expressam melhor, de modo mais expressivo e mais proativo. E que,
depois, devem ter educação musical. Mais educação musical representa
mais educação para a sensibilidade e mais “ouvido” com que se vai da
verdadeira Torre de Babel, que é a música, para a palavra e dela para os
gestos. Resumindo: mais corpo, mais música e mais língua materna. Até
porque as crianças se apaixonam em português, se zangam em português,
sonham em português. Sendo assim não acho que se ganhe se não
investirmos primeiro no português e, só depois dos 8 anos, em um outro
idioma. Até porque quando olhamos para o bilinguismo dos adolescentes
não me parece que ele seja só útil. Afinal temos cada vez mais
adolescentes iletrados: que sentem, que discorrem mas que, ao não
conseguirem traduzir a vida mental em língua materna, transformam em
angústia aquilo que seria traduzido em palavras e com isso adoecem. Por
outras palavras: menos cuidados com a língua materna significa mais
doença mental.
Rita: Há também uma grande
preocupação em colocar os filhos ainda pequenos em escolas bem colocadas
no exame nacional do ensino médio, ENEM, em uma aposta de que assim os
filhos terão mais chances de entrar nas melhores universidades. É uma
preocupação sadia, na visão do senhor?
Sá: Eu entendo os cuidados dos pais. E
interpreto-os como um sinal de bondade. No entanto, nem sempre um modelo
educativo sedutor ou um espaço escolar exemplar são tão indispensáveis
para o sucesso escolar como o é um professor. Um professor especial é
uma estrela que guia. Na escolha de uma escola deve estar, em primeiro
lugar, a sabedoria e a qualidade humana de um professor. É claro que
quando se conjugam um professor mágico, um espaço escolar bonito e
aconchegante e um modelo educativo “de rosto humano” estão criadas as
condições para que as crianças fujam para a escola (em vez de fugirem
dela) e para que o sucesso educativo se torne claro.
Esta tendência para escolas mais exclusivas, com menos
diversidade social e econômica, mais amigas de tudo o que é uniforme, e
com muito menos crianças é, também, comum em Portugal. E eu acho ruim!
Porque a vida é inclusiva, por excelência. Porque todas as crianças
(todas elas!!) têm sempre, pelo menos, uma necessidade educativa
especial. E porque os rankings das escolas são, muitas vezes,
mentirosos: comparam escolas públicas e escolas privadas, com condições
muito diferentes e escolas das grandes cidades com escolas do interior.
Sendo assim, pais empenhados com a educação dos filhos são pais amigos
do futuro. Tomara que eles aceitem que uma escola não serve para formar
jovens tecnocratas mas pessoas mais educadas e mais amigas do
conhecimento e do futuro.
Rita:Existe a escola ideal? Se sim, como ela seria?
Sá: Não existe, nem precisaria existir. Seja como for, uma escola amiga do conhecimento e das crianças será:
.Uma escola onde as aulas serão, sobretudo, de manhã
(porque somos animais cujos ritmos biológicos nos tornam mais
perspicazes e mais inteligentes de manhã)
.Uma escola onde as aulas terão entre 45 e 60 minutos e, em vez de serem expositivas devem ser, sobretudo, participadas
.Uma escola onde os recreios tenham entre
20 e 25 minutos, e sejam cobertos e adequados (porque brincar não é uma
atividade de primavera/verão mas de todo o ano) e onde se possa correr e
brincar.
.Uma escola onde todas as disciplinas
tenham o mesmo valor e onde não haja disciplinas de primeira (como a
matemática ou o português) e disciplinas de segunda (como a educação
física ou a educação musical)
.Uma escola onde não haja turmas de bons alunos e turmas de alunos banais
.Uma escola onde nunca se sossegue até se
descobrir o que é que cada aluno tem de singular (e que represente uma
mais valia para toda a escola) e qual é a sua necessidade educativa
especial
.Uma escola que recomende que se brinque
todos os dias, porque brincar é um patrimônio imaterial da Humanidade e
quem não brinca não pensa nem aprende
.Uma escola com mais criatividade e menos repetição
.Uma escola menos amiga dos trabalhos de casa
.Uma escola onde haja mais cooperação entre professores e família
.Uma escola que acarinhe a autonomia e a pesquisa das crianças e onde não se incentivem as explicações ou aulas que se multipliquem
.Uma escola com mais direitos à dúvida e aos erros
.Uma escola onde os alunos faladores
tenham um quadro de honra, porque eles são um patrimônio fundamental da
escola pela forma como interpelam e dão à escola a oportunidade de se
repensar
Rita: As crianças estão indo cada vez mais cedo à
escola por diversos motivos, entre eles, porque o senso comum tem dito
que precisamos “estimular” nossos filhos o quanto antes. As crianças
precisam mesmo da escola assim tão pequenos? A partir de qual idade ela
se torna necessária?
Sá:As crianças ganham se frequentarem a
educação infantil a partir dos 3 anos. E o ensino básico aos 6. Desde
que o educação infantil não seja uma pré-escola, onde as crianças sejam
empurradas para atividades escolares como aprender a ler ou a escrever.
Estimular as crianças cada vez mais cedo para atividades escolares não
as torna nem mais inteligentes nem mais amigas do conhecimento. Há
então, para todos nós, um compromisso entre tudo aquilo que a escola
pode dar e o tempo indispensável que leva sempre a transformar uma
criança saudável num adulto com futuro. Mas, atenção: ninguém estimula
um filho se não o souber sentir e se não o souber escutar! Se aos 3 anos
a escola complementar a família estamos a dar uma oportunidade mais
plural de crescimento a uma criança.
Rita: Tirar boas notas é importante?
Sá:Claro que sim. Mas eu receio que os pais só se
preocupem com as boas notas nas provas. E eu acho que eles têm, também,
de exigir boas notas nos recreios, boas notas como netos e como filhos.
Boas notas em relação seu espírito solidário, e boas notas nos
compromissos cívicos. Ter boas notas é importante sim, porque as mesmas
competências estimuladas por pessoas diferentes, a propósito de diversas
disciplinas, no contexto de grupos distintos, traz mais e melhores
performances às crianças, sendo essa versatilidade aquilo com que mais
elas se habilitam para o futuro. Assim os pais não se esqueçam que,
regra geral, as crianças estão pouco habilitadas para o insucesso e que
isso funciona como uma espécie de imunodeficiência adquirida.
Rita: Como preparar os filhos para o fracasso e qual a importância dessa preparação para o futuro deles?
Sá: Os fracassos nunca se preparam de véspera, Rita.
É um pouco assim que tudo se passa na nossa vida. O grande desafio de
um insucesso – nas crianças como em nós – passa por sabermos se as
pessoas que são mais importantes na nossa vida são capazes de conviverem
com a nossa tristeza. Na verdade, elas estão sempre lá, ao nosso
dispor, mas nem sempre aceitam e acolhem a nossa tristeza. Muitos pais
afligem-se com a tristeza dos filhos como se lhes dissessem: se você
está triste, você me põe triste… E, quando é assim, uma criança dói-se
por estar triste e assusta-se ao sentir que a sua tristeza será estranha
ou mais ou menos misteriosa para os seus pais. Isto é: a tristeza é
inevitável quando vivemos um fracasso, mas quando as pessoas que nos
amam se assustam com a nossa dor, perdura a tristeza que nos assalta e é
acrescida pelo desamparo que a falta de acolhimento que ela desencadeou
terá merecido. Ora, é muito importante que os pais sintam os filhos.
Mas, mais precioso ainda, é que eles percebam que a tristeza ajuda a
esclarecer se as pessoas que nos amam nos sabem amar. Sendo assim, a
tristeza é o melhor antidepressivo do mundo! Porque quanto podemos estar
tristes e mais sentimos que as nossas dores nos dão mais e melhores
pais, mais nos tornamos audazes e guerreiros. Tenho medo, portanto, que
os pais tenham construído um ideal de um crescimento antidepressivo para
os seus filhos e seja isso que mais os deprimem. Ao contrário daquilo
que, seguramente, eles desejam. Ao contrário dos perigos que eles vêem
ou imaginam à volta da vida das crianças . E ao contrário daquilo que a
sua bondade deixaria supor. Sendo assim, pais bondosos não exageram na
prevenção da dor. Deixam que o improviso da própria vida faça o seu
trabalho porque eles sabem que, no caso de um filho se magoar, eles são
quem mais os tornam corajosos, mais audaciosos e mais tenazes. Já, ao
contrário, crianças que fogem da dor são crianças que se tornam de
“porcelana”: frágeis e fóbicas, portanto. Porque a melhor forma de ficar
preso a uma dor é fugir dela.
Rita: O que o senhor acha da lição de casa? Ela é necessária? A partir de qual idade?
Sá: Acho ruim. Porque a multiplicação da
lição de casa talvez seja a prova do modo com a sala de aula está
doente, a ponto de não conseguir ensinar crianças diferentes de forma
razoavelmente idêntica e unicamente no período escolar. E acho ruim,
ainda, porque mais lições de casa significam menos tempo para a família,
menos tempo para viver e menos tempo para brincar. E, se for assim,
mais lições de casa roubam a infância das crianças. Tudo o que a escola
não pode, jamais, patrocinar.
Rita: Quando o pai deve apoiar a escola e quando
deve questionar suas atitudes? Aqui no Brasil temos um “fenômeno” de
enfraquecimento da autoridade de algumas escolas particulares que muitas
vezes não conseguem punir o aluno por serem pressionadas pelos pais.
Sá: Os pais são a verdadeira “entidade
reguladora” da escola e a escola é a primeira “comissão de proteção de
crianças e de jovens em perigo”. Por outras palavras, a escola deve
educar os pais, os pais devem educar os professores e as crianças devem
educá-los a ambos. Mas isso não pode servir para alimentar um sistema
onde o dinheiro “compra” a justiça escolar. Porque se se limita a
autoridade de um professor (que é sempre um exercício de sabedoria, de
justiça e de bondade) está-se a utilizar o dinheiro para ensinar às
crianças que tudo se compra. E, se for assim, os pais estão a pôr as
crianças em perigo. Pais como estes, independentemente das escolas que
os seus filhos frequentem ou do poder que imaginem que tenham, não podem
ter os seus filhos a sua guarda! São pais que educam com maus exemplos.
São, portanto, perigosos.
Rita: O que o pai e a mãe devem exigir do filho?
Sá:Que seja honesto, que seja humilde, que
escute quem lhe mereça admiração, que jamais esqueça que quem foge de
errar vive preso no erro e que perceba que ao orgulho se chega quando
vencemos, com a ajuda dos outros, as nossas dificuldades (ao contrário
da vaidade que representa a veleidade de os vencermos a eles).
Rita: No livro, o senhor afirma que os bons filhos não são os que tiram melhores notas. Por quê? Quais são os bons filhos?
Sá:Bons filhos são aqueles que percebem que errar é
aprender. São aqueles que, mesmo depois de entrarem na escola, continuam
perguntando “por quê?”. E que percebem que os pais não são necessários
para o crescimento dos filhos, mas são indispensáveis. É por isso que eu
acho que os bons filhos não são aqueles que não dão problemas aos pais
mas, sobretudo, aqueles que lhes põem problemas. Porque é à custa desses
desafios que os pais crescem e se tornam melhores pais.
Rita: Há uma “epidemia” de diagnósticos de crianças
hiperativas e/ou com déficit de atenção. A muitas dessas crianças são
prescritos remédios. Existe tanta criança com problema assim?
Sá: Não! A forma como se medica as
crianças , com mão leve e sem critério e com substâncias da família das
anfetaminas é grave. Porque as pessoas parecem esquecer-se que as
crianças se têm mais tempo de escola e menos brincam mais distraídas se
tornam. Quanto mais sedentárias e mais “info-engolidas” mais distraídas
se tornam. Quanto menos convivem e menos conversam mais distraídas se
tornam. Quanto mais vivem num stress crônico, com agendas de
compromissos absurdas, mais distraídas se tornam. Quanto menos regras e
menos rotinas têm, mais os seus ritmos de todos os dias são confusos e
mais distraídas se tornam. Na verdade, se há quem tenha déficits de
atenção são, sobretudo, os ministérios da educação e as associações de
pais. Porque parecem ignorar os motivos – que são da responsabilidade
dos mais crescidos – pelos quais as crianças parecem distraídas. E,
depois, dão-lhes uma “poção mágica” que as tornam mais entorpecidas de
segunda à sexta, no período escolar, como se isso fosse um aditivo
inofensivo e sem consequências a médio e a longo prazo. Ora, na verdade,
não existe tanta criança com problema. Existem , isso sim, muitos pais
com problemas, que vivem de forma preguiçosa as dificuldades das
crianças, como se elas não aprendessem, sobretudo, com os exemplos dos
pais.
Rita: A paternidade e maternidade melhoram com a experiência?
Sá: Sem dúvida que sim. Aprendemos a ser
pais à medida que somos pais. Aprendemos a ser mais compreensivos e
perdemos os pré-conceitos e os pré-juízos. Aprendemos a colocarmo-nos
no lugar dos outros e a senti-los em nós. Aprendemos a esperar e a ter
pressa de futuro."
aqui.
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